Mostrar mensagens com a etiqueta Receção em Holandês. Mostrar todas as mensagens
Mostrar mensagens com a etiqueta Receção em Holandês. Mostrar todas as mensagens

2023/03/11

Camões e Macau no romance “O Reino Proibido” do escritor neerlandês J. Slauerhoff



"Se a felicidade pudesse ser encontrada em algum lugar da Terra, tinha que ser lá."
O Império Proibido, 1932

Camões e Macau num romance neerlandês



O Reino Proibido / J. Slauerhoff. – Trad. Patrícia Couto, Arie Pos. Lisboa: Teorema, 1997.

Ed. original: Het verboden rijk. – Rotterdam: Uitgave Nijgh & Van Ditmar, 1932.


 




“O romance revela um mundo em decomposição e em conflito, dominado pela animosidade entre chineses e portugueses e é constituído por três linhas narrativas que se entrecruzam e se sobrepõem. Uma primeira relata a história de Macau, desde os acontecimentos que por volta de 1540 levaram à sua fundação até ao início deste século. À imagem dada segue a linha de ascensão e queda apresentada na obra de C. A. Montalto de Jesus, Historic Macao: international traits in China old and new (1926). Trata- e de uma reedição da obra publicada em 1902, aumentada com uma parte bastante crítica em relação à política governamental e ao futuro de Macau. Logo após a sua publicação foi proibida e queimada pelas autoridades [Nota: “Uma primeira edição portuguesa da versão apreendida em 1926, Macau Histórico, foi publicada em 1990 pela Livros do Oriente”, Macau. – 350 p.; il. (25 cm)]. Não obstante, Slauerhoff adquiriu um exemplar do livro durante a sua primeira visita a Macau. Utilizou-o como fonte de informações acerca da história da colónia portuguesa. Mais uma vez, tal como foi o caso com a biografia de Camões da autoria de Schneider, a obra fornecia uma visão e interpretação dos acontecimentos históricos que correspondia à visão do próprio Slauerhoff. E mais uma vez ele utilizou os dados para servir os seus intentos, de forma aleatória, transfigurando-os e deslocando-os no tempo e no espaço. Assim, encontramos no Prólogo que trata da fundação de Macau dois protagonistas chamados Farria e Mendes Pinto e um remake do episódio da vingança de António de Farria em resposta à destruição de Liampó pelos chineses, como relatado por Fernão Mendes Pinto na sua Peregrinação. Slauerhoff baseou-se no resumo do episódio que encontrou em Historic Macao.

Uma segunda linha narrativa descreve a vida de Luís de Camões na corte de Lisboa, a viagem de navio para o desterro, o naufrágio (aqui situado em frente à baía de Macau), um segundo exílio – desta vez para a China – e a travessia pelo deserto chinês. As duas linhas juntam-se quando Camões chega a Macau.

A terceira linha narrativa conta a vida dum radiotelegrafista anónimo de origem irlandesa, que nos inícios dos anos trinta do nosso século se encontra embarcado no Mar de China. O radiotelegrafista apanha sinais misteriosos que mais tarde se mostram ligados à vida de Camões. Através dos sinais, o espírito do poeta consegue tomar conta do espírito do radiotelegrafista. Também ele sofre um naufrágio e é obrigado a atravessar o deserto chinês. Ambos vagueiam à beira da morte pelo deserto, onde se dá por fim uma «sobreposição» das duas personagens. As duas personagens confluem e no corpo do radiotelegrafista (mas vestido nas roupas de Camões) conseguem voltar a Macau, onde o radiotelegrafista se liberta da influência avassaladora do poeta, que se refugia na sua gruta, dedicando-se exclusivamente à composição da sua epopeia. O radiotelegrafista volta para Hong Kong para retomar a sua vida, na ciência de que os espíritos do passado não o podem libertar do seu próprio destino.

O que pode parecer um romance histórico é, pelo contrário, um complexo e arrojado romance simbólico que trata do problema da identidade do homem moderno e da questão da inspiração poética. O radiotelegrafista pode ser interpretado como mais um alter ego do autor, desta vez na sua qualidade de poeta maldito moderno que se deixa inspirar por poetas malditos de outros tempos. A inspiração procurada ameaça a identidade do poeta moderno.

É com este mesmo sentido simbólico que no romance a linguagem é sempre apresentada como um instrumento inadequado, que conduz à falta de comunicação, ao isolamento e à morte. Também a linguagem está sujeita à corrosão do tempo. As palavras perderam a sua força, elas desvalorizaram-se na troca diária. No romance, praticamente não encontramos diálogos. Também as cartas nunca são respondidas, as ordens e conselhos não são ouvidos por ninguém. A profunda crise em que os dois protagonistas se encontram é a dum mundo fragmentado, sem coesão interna, porque foi o verbo, a palavra no sentido de logos, que perdeu o seu poder ordenador e criador. Quer isto dizer que também a palavra é fragmentada e que cabe aos protagonistas restaurá-la.

A busca desta palavra matriz é uma longa e perigosa expedição, tal como fora a viagem de Vasco da Gama. Desta vez o rumo não leva ao outro lado do mundo, mas para dentro, para o subconsciente. Abandonado no deserto chinês, numa alucinação próxima da morte, o radiotelegrafista é possuído por Camões, seu subconsciente é o recetor do canto do poeta português. É preciso procurar nas ruínas do passado, da tradição literária – aqui representada na figura de Luís de Camões –, os resíduos para construir um novo canto. O radiotelegrafista sobrevive porque é salvo por Camões e porque se salva de Camões, expulsando-o. Se necessita da tradição literária, também precisa de se distinguir dela para poder construir a sua própria identidade.

O texto que perverte Os Lusíadas, é ao mesmo tempo construído à base de fragmentos da obra lírica de Camões, recorrendo a palavras, imagens ou motivos do poeta português. Este é o romance em que Slaueihoff é «possuído» por Camões, de quem, como um vampiro, extrai o canto.”


Patricia Couto

In: “Camões e Macau num romance neerlandês”
em Camões: revista de letras e culturas lusófonas, n.º 7 – Macau
(out.-dez. 1999), 115-117.







 





        1. Slauerhoff, J. - [O Reino Proibido] - capa de ed. holandesa.
        2. Slauerhoff, J. J. - [O Reino Proibido] - capa de ebook em holandês.
        3. Um dos primeiros mapas minuciosos  de Macau, 1639, pelo cosmógrafo António de Mariz Carneiro.
        4. Slauerhoff vestindo indumentária chinesa (in Col. Letterkundig Museum).
        5. Jan Jacob Slauerhoff e a baliarina Darja Collin, com quem esteve casado entre 1930-35.
        6. Panorama de Macau, em bilhete-postal, da coleção do escritor (in Literatuur Museum).