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2023/06/12

A vida de Luís Vaz de Camões, por José Movilha





José Movilha em traje do séc. XV (foto no perfil do Facebook do escritor)


"ERROS MEUS, MÁ FORTUNA, AMOR ARDENTE..."

Autoria: José Movilha
In: Athanor de Letra, 10.06.2011




Jau acercou-se do pobre leito, a um aceno do amo. Tinha escondido a escudela com as poucas moedas esmoladas na Rua Nova dos Mercadores. O amo Luís Vaz não queria que ele pedisse e recebesse insolências, fosse assaltado por malfeitores em qualquer beco pouco iluminado, ou se soubesse que pedia para a casa. Ainda lhe borbulhava na alma o orgulho de fidalgo, embora pobre, e o reconhecimento de umas tantas gentes cultas que sabiam o que era a arte poética. Aquele catre diminuto e insalubre na Calçada de Santana, era o refúgio dos três, e ali enfrentavam a miséria Luís de Camões, sua mãe Ana e o fiel javanês a quem tinha baptizado António, mas que era tratado por Jau. A magra tença de 15.ooo réis anuais, atribuida por El Rei D. Sebastião, mal dava para viverem, a maior parte das vezes chegava atrasado o pagamento e tinham que ir falar com D. Pedro de Alcaçovas Carneiro, escrivão da puridade; daí as preocupações de Jau em arranjar mais alguns meios de subsistência.

Últimamente soerguia-se do leito, a breves períodos, enquanto as malfadadas terçãs não o cobriam de suor febril, quando assim era ainda escrevia e lia. Acariciava contra o peito o seu livro impresso há oito anos Os Lusíadas; antes a morte que ter perdido aquele manuscrito. Mas, cruéis fados, perdeu-se a doce Dinamene: "Ah! minha Dinamene! Assim deixaste / Quem não deixara nunca de querer-te! / Ah! Ninfa! Já não posso ver-te, / Tão asinha esta vida desprezaste!" Ah, como se pode viajar com a mente!... Quando saía de sua casa na Mouraria, para ir ter com seu pai aos armazéns das guardadas coisas da Guiné e da Índia. Tinha muito orgulho na sua descendência fidalga, e na sua condição de "escudeiro"; não queria ser "rascão", como mestre Gil Vicente chamou, nos seus autos, a alguns da sua condição. Logo no ano do seu nascimento um presságio astrológico dizia que ia acontecer um dilúvio de proporções bíblicas, nada que molestasse as musas da sua inspiração. Que recordação dos seus estudos em Coimbra, no colégio de Todos-os-Santos; os estudos da Gramática, Retórica, Dialéctica, Filosofia; mas, do que mais gostava era do Latim. Que mundos de acesso me deu!... Os clássicos gregos, romanos; a biblioteca do mosteiro de Santa Cruz, onde li as obras de Petrarca - a quem tomei por modelo -, Bembo, Garciliano, Ariosto, Tasso, Bernardim Ribeiro; como foi bom saber italiano e escrever castelhano."

"Doces e claras águas do Mondego, / Doce repouso da minha lembrança / Onde a conquista é pérfida esperança / Longo tempo após si me truxe cégo. / De vós me aparto, sim, porém não nego, / Que inda a longa memória que me alcança, / Me deixa de vós fazer mudança, / Mas quanto mais me alongo mais me achego."

Jau ouvia falar tantas coisas ao seu amo. A maior parte não as percebia, não tinha instrução, fazia-se entender e percebia as palavras tão diferentes desta gente de pele branca. O amo falava em Natércia, Bárbara, Dinamene, Maria, Maria era o nome que mais pronunciava quando estava febril. Ele, Jau, como as aves coloridas que falavam lá na sua terra, aprendeu uma melopeia que lhe cantava baixinho: "Aquela cativa, / que me tem cativo / porque nela vivo, / já não quer que viva. / Eu nunca vi rosa / em suaves molhos, / que para meus olhos / fosse mais fermosa.

Nem no campo flores,/ nem no céu estrelas/ me parecem belas/ como os meus amores./ Rosto singular,/ olhos sossegados,/ pretos e cansados,/ mas não de matar.

Ua graça viva, / que neles lhe mora, / para ser senhora / de quem é cativa.../  Pretos os cabelos, / onde o povo vão / perde opinião / que os louros são belos.

Pretidão de Amor, / tão doce a figura, / que a neve lhe jura / que trocara a cor. / Leda mansidão / que o siso acompanha;/  bem parece estranha, / mas bárbara não.

Presença serena / que a tormenta amansa; / nela, enfim, descansa / toda a minha pena. / Esta é a cativa / que me tem cativo. / E pois nela vivo, / é força que viva."


Aquietava-se tanto quando tal ouvia que parecia que todo o seu ser se revigorava. A velha mãe assumava por entre o velho pano que dividia o catre e ficava a contemplá-lo mudamente. "O seu Luís Vaz, que tantos anos se apartou das suas gentes!... Cruel mutilação lhe deformou a visão, e tantos e tão rudes padecimentos passou, tanto envelhecendo em tão poucos anos".


Aos dezoito anos vê a Lisboa que ainda tem largadas do Tejo. A Lisboa que recebe um fidalgo pobre mas atraente de porte e jovialidade, cabelos arruivados, olhos expressivos, modos de saber estar e falar. Era ainda um voluntarioso lutador e um hábil espadachim. Foi doidivanas, foi; teve rameiras por companhia, arruaceiros, embarcadiços de passagem. Até inventou um nome "Malcozinhado", para designar famosa barraca da Ribeira onde o vinho corria célere nas gargantas e se "comia quer bem, quer mal", a origem do epíteto. A sua vivacidade e composição poética dá nas vistas. Conhece por via disso D. Manuel de Portugal; poeta, senhor de alta condição social e frequentador da corte. Na mesma altura, no Pátio de Comédia, onde se dizia poesia e representavam pequenas peças e autos; conhece o franciscano António Ribeiro Chiado, poeta e apreciador do despontar artístico de Camões. É Ribeiro Chiado que alcunha Luís Vaz de Camões, de "Trinca- Fortes", por ele nunca virar a cara a qualquer injustiça e fazer frente a pretensos fortalhaças que molestavam indefesos. Finalmente a apresentação no Paço da Rainha em Xabregas, onde D. Catarina, mulher de D. João III, organizava saraus culturais. E, no Palácio da Infanta D. Maria, irmã do rei. Neste seletivo ambiente da corte conhece ainda Francisco de Morais, poeta e novelista, autor de um romance de cavalaria muito apreciado, Palmeirim de Inglaterra. Estabelece também amizade com D. Francisco de Noronha, que fora embaixador em Paris e camareiro-mor da rainha D. Catarina. Tudo isto seria determinante para a integração do poeta neste meio. Passado algum tempo as donzelas disputavam o favor das suas estrofes numa folha de papel; e os "motes" sucediam-se, devolvidos em glosa artística e elegante. Certa vez D. Francisca de Aragão, senhora de alta erudição e beleza, que brilhava nos serões da corte, propos um complicado mote a Camões: «Mas porém que cuidados?» - ao que o poeta respondeu:

"Se as penas que Amor me deu/  Vêm por tão suaves meios, / Não há que temer receios, / Que vale um cuidado meu / Por mil descansos alheios. / Ter nuns olhos tão formosos/  Os sentidos elevados, / Bem sei que em baixos estados / São cuidados perigosos. / Mas, porém, ah! que cuidados!"


Claro, que tanto talento e bonita figura despertava algumas invejas, mais evidentes nos homens de letras seus pares. Parece que desse despeito cultivou Pêro de Andrade Caminha. Pouco tempo depois, aconteceu, o poeta ter tido a sua primeira paixão, numa marcada Sexta-Feira-Santa de 1544 , na igreja das Chagas. Camões vê Catarina, que por anagrama criado por si, dará mais tarde o nome de Natércia. Catarina era uma jovem e linda camareira da rainha e tinha 14 anos; Camões tinha 20 anos e estava na pujança da sua figura. A jovem não é indiferente a Luís Vaz. Mas, a condição de fidalgo sem meios de fortuna é um óbice que o perseguirá sempre negando-lhe amores que ele até vê correspondidos. "Ah, Natércia cruel! Quem te desvia / Esse cuidado teu do meu cuidado? / Se tanto hei de penar desenganado, /  Enganado de ti, viver queria..."

Mesmo passando à condição de aio de D. António de Noronha, cargo que pouco mais era do que escudeiro, Camões não tinha qualquer condição de manter amores na corte ou fora dela, com qualquer mulher de elevada condição fidalga. Se não bastasse um primeiro desengano de amor, aparece logo a seguir um outro enlevo, mais profundo e inatingível, que marcará ainda mais a vida do poeta. A Infanta D. Maria, irmã de D. João III, de uma cultura muito elevada e personalidade vincada, vive independente no Palácio de Santa Clara, onde recebe a fina flor das artes do país. D. Maria aprecia muito o génio de Camões, e nasce entre ambos uma afinidade intelectual muito elevada, não pondo a Infanta qualquer marca na tão elevada condição social que os separava. Os dias passam e D. Maria maravilha-se com o talento de Luís Vaz. Por sua vez este, vê na Infanta a elevação espiritual e intelectual capaz de o compreender e aos seus sonhos. A este desejado amor de Camões, que dizer: se com D. Catarina, teve tão fugaz desfecho, com a Infanta de Portugal, tal nunca poderia acontecer. O poder régio é informado: Camões é brandamente banido; parte para uma espécie de exílio interno, sendo obrigado a permanecer a uma certa distância de Lisboa. A este afastamento, escreve:

"Aquela triste e leda madrugada. / Cheia toda de mágoa e de piedade, / Enquanto houver no mundo saudade, / Quero que seja sempre celebrada.

Ela só, quando amena e marchetada, / Saía, dando à terra claridade, / Viu apartar-se uma outra vontade, / Que nunca poderá ver-se apartada;

Ela só, viu as lágrimas em fio / Que de uns e de outros olhos derivadas, / Juntando-se, formaram largo rio; 

Ela ouviu as palavras magoadas / Que poderão tornar o fogo frio, / E dar descanso às almas condenadas."


Camões enceta a sua longa diáspora que há-de começar aqui e levá-lo a muitos lugares do mundo. Procura o bucolismo das margens do Tejo; parece ser em Constância que vive os três longos anos que o afastam da capital do reino. Lê, escreve, escreve muito, já, de certo constava, no seu íntimo criativo a génese de um grande épico que contasse as glórias lusas. Em Ceuta perde a visão do olho direito. Regressa, e na entrega de defender amigos, fere à espada um escudeiro da corte. É preso na mais hedionda das prisões, a do "Tronco"; junto a uma ralé medonha sofre os designios dessa proximidade. Os amigos angariam algum dinheiro para compra ao carcereiro de algumas condições, vela de iluminação, papel e pena. Camões é esquecido das vistas do seu Tejo que ama, durante nove meses. Sai, e após duas semanas parte numa armada para a Índia; logo à saida da barra perde-se por naufrágio uma das quatro caravelas. A sua saudade é grande quando deixa para trás o monte " Cintio":

"Já a vista pouco a pouco se desterra/  Daqueles pátrios montes que ficavam; / Ficava o caro Tejo e a fresca serra/  De Sintra, nela os olhos se alongavam. / Ficava-nos também na amada terra / O coração, que as mágoas lá deixavam; / E já depois que tudo se escondeu, / Não vimos mais, enfim, que mar e céu."

Camões, não obstante a dureza da viagem, maravilha-se nas observações preciosas que contribuirão muito para a narrativa do seu épico poema. Naquele setembro de 1553, a nau São Bento chega a Goa. Daqui sai para outras paragens, como soldado combatente das guarnições das naus. Vai conhecer as águas do golfo Pérsico. Vai em frotas de comércio fazer negócios no Extremo Oriente, o "trato da China"; Ceilão, Malaca, Ternate e Banda. Assiste a temíveis massacres. Ele, um humanista, tem que conviver com a desumana voragem da cobiça do oiro e com o pouco valor dado à vida humana. Chega a ir a Macau, onde se instala com os desvelos da sua companheira Dinamene, numa cenóbica gruta, pensa ter encontrado tranquilidade para acabar o seu grande poema. A força bruta inquieta-o mais uma vez. Um capitão de nau que diz ter pertença de leis naquele local dá voz de prisão a Camões. No regresso a Goa, a nau naufrága nos baixios do rio Mecong. Dinamene morre, Camões nada com desespero apertando o manuscrito dos seus poemas épicos, entre os fracos retalhos das suas vestes. Vagueia, faminto e ferido por entre praias com gente estranha, comendo dos parcos alimentos, dos restos das populações que encontrava. Consegue ir para Malaca e depois para Goa. Parecem os "fados" querer dar algumas tréguas aos infaustos do poeta. Encontra alguns amigos: João Lopes Leitão, Vasco de Ataíde, Jorge de Moura. Encontra Garcia da Orta, humanista, médico e botânico, é nesta altura um septuagenário que tem em preparação uma grande obra científica Colóquio dos Simples e das Drogas. Mostra-a ao poeta, que logo, culto como era, viu da importância que se revestia a impressão, testemunhando a favor do alvará junto do Vice-rei. Passados estes mais de cinco anos de obrigatoriedade de cumprir na Índia. Luís pensa em regressar a Lisboa. Consegue libertar da escravatura um jovem, natural da ilha de Java, empenha-se em catequizá-lo, dá-lhe o nome de António, cria com ele grandes laços de amizade, e logo pensa em trazê-lo para Portugal. Parte Camões, e o seu fiel Jau, da Índia; naquele ano de 1567. Rumando para Moçambique. Não estavam sanadas as desventuras do poeta, e o capitão Pedro Rolim empresta 200 cruzados a Luís. Logo em Moçambique quer imperiosamente que Luís Vaz lhe pague, sendo muito contundente para com ele.Valem-lhe os amigos, que encabeçados por Diogo de Couto, fazem uma colecta e pagam a dívida. Em Novembro de 1569, Camões abandona Moçambique, na nau Santa Clara, sobre o comando de D. António de Noronha. Entra no Tejo e revê as sete colinas e os ares de Lisboa, estivera afastado durante 17 anos. Sentia-se um estranho: alquebrado, envelhecido, pobre, quase sem conhecer alguém que por ele tivesse interesse. Da família, só a sua envelhecida mãe Ana. Vai viver para uma velha casa com duas pequenas divisões, para os lados da Calçada de Santana. São três as almas que se amparam: Luís, Ana e Jau. Depois de muito porfiar para obter permissão para publicar o seu poema épico Os Lusíadas, com a ajuda de antigos amigos que ainda lembravam o seu génio: D. Francisco de Noronha, Dona Francisca de Aragão que apreciava o poeta e se lembrava dele, das sessões do Paço; sendo ela, a pedir a D. Pedro de Alcáçova Carneiro, escrivão da puridade e da confiança de D. Sebastião, que fosse facilitada a licença régia. Sendo ainda, submetido o manuscrito ao parecer da inquisição. Finalmente o livro é impresso em 1572, tendo os primeiros exemplares muitos erros tipográficas e ainda alguns cortes da censura; condição só reposta dez anos após a morte do poeta e na 4.ª edição de 1608.

"Eis-me no fim!... Carrego eu e esta pátria tanto sofrer, a vil peste que ceifa sem temperânça. Agora as notícias da funesta campanha do Norte de África, de que dizem as novas que se perdeu grande parte da mocidade desta lusa terra. O rei D. Sebastião que ninguém sabe onde está, e que todos esperam que apareça para alento da continuada nação". A tosse rompe-lhe aqueles balbúcios evocativos. Jau chega-lhe aos lábios uma tisana de plantas que são um último fel e que nada modificam do seu febril estado. Ajeita-lhe a cabeça com desvelo enquanto lhe limpa uma muda lágrima que não chega a irromper daquelas pregas sem visão. A fraca luz da vela estremece de mudança, tinha dado alento aos últimos escritos. Estes eram para D. Francisco de Noronha, que sempre percebeu do seu astro.

«Foge-me, pouco a pouco, a curta vida, se por acaso é verdade que inda vivo; choro pelo passado; e, enquanto falo, se me passam os dias passo a passo. Vai-se-me, enfim, a idade e fica a pena. Enfim acabei a vida e verão todos que fui tão afeiçoado à minha pátria que não só me contentei de morrer nela, mas com ela.»