Logo à entrada, na “Advertência ao leitor”, a nota preliminar funciona também como informação ao inverso: sendo uma “história” é certamente ficção e se, por isso mesmo, não é de esperar “rigor” ou “justeza” próprios da História, a narrativa nela irá beber, tratando-se, portanto, de um romance histórico, com uma personagem como Luís de Camões, que tanto é ficcional como verdadeira, tal como o cenário da Ilha na costa oriental africana, o furto de um manuscrito valioso e alguns outros aspetos da viagem que era estabelecida entre o Reino e o Estado da Índia.
A natureza controversa do protagonista Bernardo Vasques e a ideia de ter existido em Macau um arquivo de confissões da comunidade são ótimos elementos ficcionais e envolvem o leitor no enredo simultaneamente fabuloso e credivelmente verdadeiro.
Complementarmente, no final da obra, Carlos Morais José regista nos “agradecimentos” as figuras da literatura, do cinema, da história e outras áreas do saber que o terão influenciado, entre elas, Helmut Schoeck, o autor de Envy: A theory of social behaviour (1966), que lhe proporcionará os fundamentos “científicos” para um pródigo exame da Inveja, outra protagonista da história.
Portanto, a narrativa de Carlos Morais José, para além de dialogar com a História de Portugal e a vida e a obra de Camões, configura e psico-romanceia Bernardo Vasques, desde a sua infância no núcleo familiar, passando pela comunidade académica de Coimbra e depois no grupo de viagem para a Índia, culminando em Macau.
Mas falemos do enredo e da organização da narrativa, construída em torno da leitura de um documento secreto, subtraído do Arquivo das Confissões, onde está retratada a dramática história de Bernardo Vasques, o homem que, devorado pela inveja, roubou na Ilha de Moçambique o Parnaso, um livro do grande poeta Luís de Camões.
O livro inicia-se no presente, com a voz de um padre inglês protestante que medita sobre o estado eufórico que experimenta o viajante quando “parte da sua terra e enfrenta o desconhecido” (José 2018:11); é o seu caso – finalmente “a bordo de um veleiro a caminho da China” (idem, 11). Quando o barco que o transportava atracou em Singapura, onde teria de esperar dois dias por um transporte para Macau, acaba por ficar hospedado com a esposa na estalagem portuária “The Peacock Inn”, a qual dispunha de uma taberna espaçosa e mal frequentada no rés-do-chão. A hora é tardia, chove. Temos localizado o cenário ideal, bem ao jeito camiliano e mesmo queirosiano, para o convite à confissão das personagens, para o seu recuar ao passado e, da parte do leitor, a sensação ilusória de estar a ouvir uma história verídica.
Incapaz de adormecer, o padre desce à taberna, onde um padre católico irlandês em trânsito, a troco de um copo de aguardente, lhe “contará uma história única e merecedora de atenção” (idem, 27). Fica então a saber que “um pequeno grupo de jesuítas em Macau decidiu colecionar confissões e delas fazer objeto de estudo para uma melhor compreensão da mente, da alma e do espírito.” (idem, 29), criando então “um Arquivo de Confissões, onde os crimes, os desvios, os pecados e as lamúrias, numa palavra, uma extensiva parte da alma humana, se desvenda de forma voluntária e na sincera súplica do perdão” (idem:30), ou seja, resume-nos o padre católico, “uma biblioteca que contém os males do mundo” (idem.31).
Perante a “inverosímil e fascinante história” do que considerou ser “os devaneios de um alcoólico ou de um louco” (idem:32), o padre católico tenta persuadi-lo passando-lhe um documento secreto – precisamente “a confissão de Bernardo Vasques, um português que viajou para a Índia no século XVI” (idem, 35). Estamos no cap. 4, assistindo a uma conversa que decorre num tempo presente, encontraremos doravante encaixada na narrativa outra narrativa, que pertence ao tempo passado. A narrativa inicial, a do personagem-narrador que é o padre inglês protestante, apenas será retomada no 27º e último capítulo, após terminar o relato contido no documento.
É precisamente esse documento, que ocupa 22 capítulos da sequência narrativa (cap. 5 – cap.26), que nos interessa. O documento, a confissão de Bernardo Vasques num tempo passado, teria sido transcrito pelo 1.º narrador, o padre inglês, pois o irlandês zelou pelo seu tesouro e levou-o consigo quando se sumiu de vez.
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Mapa da ilha de Moçambique in Itinerário de Jan Huygen van Linschoten (Amesterdão, 1595) |
No cap. 5 inicia-se, pois, a voz de outra personagem. O
incipit do mesmo é explícito:
“Confissão de Bernardo Vasques, recolhida e comentada pelo Pe. Francisco Pacheco em meados de maio de 15...” (idem, 36). Continuamos com um padre, mas agora um jesuíta português em Macau, que ouve e regista em confissão um extraordinário navegante português. Mas logo a partir do cap. seguinte, o 6.º, e até ao 26.º, a voz e as peripécias de vida a que
assistiremos serão sempre do protagonista, Bernardo Vasques. E qual terá sido o crime que confessa? – O de ter roubado o “Parnaso” a Luís de Camões,
na Ilha de Moçambique e, não lhe bastando, ter-lhe-á usurpado a própria identidade autoral desse livro.
Vivendo no tempo de Camões, zarpando na mesma rota marítima entre o Reino e o Estado da Índia, uma “nova porta que enfeitiçava a juventude” (idem, 43), natural seria que ele se cruzasse com o épico ou outros literatos seus amigos. É o que acontece, mas, ao contrário de Diogo de Couto, que com ele se junta no torna-viagem para Portugal, Bernardo Vasques avista-o na viagem de ida para a Índia. Tal ocorre nos caps. 12 a 14, o furto é executado no cap. 14.
No romance de Carlos Morais José, o Parnaso é um livro de poesia, o cancioneiro da lírica de Camões, o qual é furtado ao seu autor na Ilha e não no resto da viagem de regresso ao Reino ou já em Portugal; em vez de um amigo cronista, temos um inimigo poeta, uma espécie de poeta maldito, infetado pelos versos do Poeta (idem, 164), que se convence a si mesmo de estar a praticar o Bem, quando afinal está a servir o Mal (idem, 164). Torna-se um pecador em nome da inveja que o corrói, pois desejaria ser Ele, o inominado que é um Deus, o Absoluto em Poesia, mas que sabe ser incapaz de atingir, pois falta-lhe o talento d’Ele para ser Camões. Bernardo Vasques é o ser humano face ao poder da Arte, o sublime de uma obra-prima, que simultaneamente o exalta e oprime. Na impossibilidade de resumir a totalidade da experiência da leitura, tenhamos uma aproximação através de um excerto, que mostra uma das razões pelas quais o poeta Bernardo invejava o “príncipe dos poetas” a ponto de cometer um crime:
“A sua obra era demasiado bela, encadeava. Como escrever depois dele? Quantos poetas vindouros não susteriam o verbo depois de lhe conhecerem os versos, por darem conta da impossibilidade de os igualar, ainda menos de os superar. O desaparecimento dos seus escritos sossegaria o futuro, manteria abertos os portões da imortalidade aos poetas a haver. Não era apenas a minha existência ameaçada: durante séculos os escritores comparar-se iam com ele e partilhariam do mesmo desespero. Aquela obra era demasiado genial para lhe ser permitida a existência. Nós, os mortais, não aguentaríamos viver a sua sombra. Destruí-la seria um ato humanitário, uma bondade digna do grande amigo do Homem.” (José 2028:87).
Em A literatura e o mal Georges Bataille afirma que ela “é o essencial ou não é nada” e se essa essencialidade também se acha vinculada ao mal é porque a literatura tem interesse como arte total, uma arte que desafia o bem convencional e a moral normativa, que confronta, pois, o mal. Todavia, ocorrendo no extremo do possível e do perigo, essa intensidade literária poderá levar as personagens à ruína. Bernardo Vasques perde-se, é um Anjo decaído, um Dorian Gray cujo retrato é uma confissão que espelha a sua degradação moral. A sua admiração extremada é quase irracional (idem, 161), o seu desejo é inveja, assumindo uma dimensão trágica como em les feux de l’envie do teatro de Shakespeare estudado por René Girard (1990). Por seu lado, Helmut Schoeck na sua obra mais conhecida A inveja: uma teoria social (1966), argumenta que a inveja é um sentimento universal e inerente à condição humana, desempenhando um papel central nas dinâmicas sociais. Em O Arquivo das Confissões ela é a protagonista, ostentada no subtítulo da obra.
Mas quem roubou o Parnaso de Camões?
Este romance-tese, belo e profundo, que é O Arquivo das Confissões: Bernardo Vasques e a Inveja, de Carlos Morais José, ficciona de forma ousada e original a perda do “Parnaso de Luís de Camões”. A sua trama é imaginada, mas também ousada – convida-nos a conhecer o lado sombrio da natureza humana, a compreender o desejo que se reveste de inveja e também de culpa. A poesia de Camões é luz, encandeia, pode fascinar e cegar, exaltar e oprimir. E Camões, o seu criador, surge ora como um Deus omnipotente ora como um Fantasma obsidiante, nunca nomeado.
O mistério do desaparecimento do Parnaso inspirou esta narrativa contemporânea. O romance, ao refletir sobre a questão da inveja, com todas as suas implicações negativas e positivas, poderá ser a chave para a descoberta do verdadeiro “Parnaso” e do seu roubador. Para tal, será preciso pensar fora dos esquemas mentais convencionais e académicos.
Se, como suspeita Maria Augusta Lima Cruz, o trecho biográfico do Poeta na Década 8.ª da Ásia pode ser uma “’construção’ biográfica, elaborada por Couto, mais de 40 anos após o encontro em Moçambique”, não sendo mais que “uma das muitas reconstituições da vida de Camões, baseadas na exegese da sua produção literária e nos seus primeiros biógrafos. (Cruz 2024) – Onde está o “Parnaso”? Que obra conhecida ou pouco conhecida de um autor da época de Camões revela afinidades com o estilo literário camoniano, com a vivência no Oriente do soldado-poeta? Alguns estudiosos estiveram perto, interrogando-se porque é que alguns aspetos da vida e da obra com que se ocupavam não eram perfeitos, não encaixavam no sistema. Falta aceitar a inveja e a maldade para se poder chegar a uma eventual usurpação de identidade, como em Os Naufrágios de Camões de Mário Cláudio, ou chegar ao livro furtado, como na narrativa de Carlos Morais José."
José Carlos Canoa
in © "Os livros perdidos de Camões na ficção contemporânea" (excerto)
comunicação apresentada no II Congresso do
Meio Milénio do Nascimento de Camões 1525-2025: Maputo & Ilha de Moçambique.
Em Moçambique, de 6 a 10 de junho de 2025.
Org. RCnA&A, U. Politécnica e U. Eduardo Mondlane, de Moçambique).