Como ensinar Camões hoje?
PODCAST
24 jun. 2025 | 15h00 | Na BNP, em Lisboa
Episódio 3 - Como ensinar Camões hoje? | Áudio, 01:15:10
Moderação de Cristina Costa Gomes
com os professores
José Augusto Cardoso Bernardes e Rui Mateus
Como ensinar Camões hoje?
"Como é que nós estamos a ensinar Camões?
Devemos resignar-nos com a forma como estamos a ensinar
ou devemos estabelecer objetivos diferentes para o ensino de Camões?
A partir destas perguntas, José Augusto Cardoso Bernardes e Rui Mateus
exploram os desafios contemporâneos do ensino do poeta,
defendendo uma abordagem mais inclusiva e atualizada da sua obra."
TRANSCRIÇÃO DO PODCAST
(com adaptação para o registo escrito)
Introdução
[Voz de Vanda Anastácio:]
"A partir da pergunta “Como ensinar Camões hoje e com que objetivo?”, os professores José Augusto Cardoso Bernardes e Rui Mateus refletem sobre os desafios e as possibilidades do ensino do poeta nas escolas e abordam questões como a interpretação literária e necessidade de atualizar os programas escolares.
Moderada por Cristina Costa Gomes, a conversa percorre temas com a formação de professores, a presença de Camões nos manuais escolares, o papel da literatura como educação artística e a importância de adaptar os conteúdos às novas realidades culturais e sociais dos alunos.
O episódio foi gravado no auditório da Biblioteca Nacional de Portugal (BNP).
Cristina Costa Gomes: Boa tarde a todos. Dando continuidade ao ciclo de debates na BNP no âmbito das comemorações do V Centenário do Nascimento de Luís de Camões, vamos dar início à terceira das sessões, subordinada a um tema extremamente pertinente e atual Ensinar Camões hoje. […] Chamo-me Cristina Costa Gomes, estou aqui na dupla condição de investigadora integrada, docente de Estudos Clássicos da Faculdade de Letras [de Lisboa], mas também com experiência [como] professora do ensino básico. Leciono História desde 1989, atualmente na escola Secundária Rainha Dona Leonor, aqui próximo de nós, na Av. de Roma.
Sendo o objetivo central deste ciclo de debates envolver o público na discussão sobre os desafios colocados pela figura, pela biografia e a obra de Camões, parece-nos que o tema de hoje é particularmente pertinente, apelando, no fundo, à experiência e participação de todos os que se encontram agora no auditório, para além dos dois oradores que tenho junto a mim. Tanto mais que o programa destas comemorações traça como um dos seus objetivos prioritários a conceção e concretização de iniciativas destinadas a alunos e professores do ensino básico e secundário e ao incentivo e criação e circulação de propostas de ensino em matérias camonianas, tendo em vista a sua integração ou a integração dos conteúdos literários e artísticos nos programas escolares. Afinal, quando paramos para pensar sobre “O ensino de Camõe hoje”, podemos procurar respostas para quatro questões simples, nucleares, mas de tão simples que são, são extremamente complexas, dada a natureza da matéria. E essas questões são:
- Ensinar Camões hoje a quem? A que níveis de ensino nos estamos a reportar e a que destinatários?
- Ensinar o quê de Camões? Quais os temas de Camões que queremos privilegiar?
- Ensinar Camões hoje como? Com que metodologias, estratégias e recursos pedagógicos?
- E ensinar Camões com que objetivos?
Apesar de serem questões comuns, questões aparentemente muito simples, as respostas são mais complexas do que parecem, dada a natureza da matéria que estamos a trabalhar e que vamos discutir hoje.
Por isso, tenho comigo dois oradores especializados, porque, para além de aliarem a literatura portuguesa nos seus currículos e percursos académicos, têm dedicado também o seu trabalho à investigação e ao ensino, com obra publicada nessas matérias.
O professor José Augusto Cardoso Bernardes dispensa apresentações. É, como todos sabem, o o Comissário-Geral das Comemorações do V Centenário do Nascimento de Luís de Camões, é um reconhecido camonista, especialista na obra de Gil Vicente, Professor Catedrático da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra, onde tem uma vasta experiência de lecionação de literatura portuguesa do século XVI. Autor de uma vasta obra sobejamente conhecida de todos, tem ainda dado uma particular atenção articulação entre literatura e o ensino de português.
O professor Rui Mateus é professor de português do ensino básico e secundário em Castelo Branco, doutorado em literatura de língua portuguesa no ramo de investigação e ensino, como uma tese sobre a adaptação dos clássicos da literatura para jovens leitores. Tem-se dedicado a analisar a literatura nos manuais escolares e, em autoria conjunta com o professor José Cardoso Bernardes, publicou em 2003 a obra A literatura e o ensino do português. Recentemente tem centrado o seu estudo na análise da obra integral nos programas de português do ensino secundário, questionando as fragilidades de um domínio curricular oficial.
Com percursos que articulam o ensino superior ao ensino básico e secundário, estou certa, estamos certos de que as intervenções deste dois oradores suscitarão hoje e aqui um debate vivo muito participado por todos aqueles que estão conosco.
Passo, pois, a palavra de imediato ao professor José Augusto Cardoso Bernardes e em seguida passarei ao professor Rui Mateus; depois abrirei o espaço de discussão a todos os presentes para, no fundo, termos o debate que nos convocou aqui hoje.
Professor José Augusto Cardoso Bernardes: Boa tarde a todas e a todos. Muito obrigado pelas palavras de apresentação que a Cristina nos dirigiu. É um gosto estar nesta mesa com o Rui, que conheço há muitos anos […] perto de 30. Ele vinha de Castelo Branco de propósito para ter aulas em Coimbra e regressava, às vezes no expresso da noite. E é uma pessoa por quem eu tenho um apreço enorme, tão grande que um dia decidi fazer um livro com ele, que é uma cumplicidade que nem sempre resulta bem: as pessoas depois de acabarem um livro podem não ficar amigas, e nós conseguimos essa proeza de ainda hoje continuarmos amigos. Não sei é como é que vamos encontrar aqui, Rui, pontos par discordarmos um do outro. É o desafio maior que aqui temos hoje, mas vamos ver se, depois de eu falar, o meu amigo consegue discordar; se não, eu ofereço-me para discordar de si em alguma coisa que disser.
O que eu me proponho nestes 20 minutos, é falar primeiramente de alguns pressupostos e depois de alguns pontos que podem suscitar a reflexão. “Pressupostos” é aquilo que nós damos como adquirido; os pontos de reflexão é aquilo que pode ser controverso.
PRESSUPOSTOS
[O encontro com Camões é na Escola]
O primeiro pressuposto já foi aflorado na apresentação que a Cristina fez; é que realmente a relação dos portugueses com Camões se define hoje na escola. Antigamente não; houve tempos em que se tinha acesso à figura de Camões por outras vias. Eu ainda conheci pessoas não escolarizadas que tinham uma relação cultural e afetiva com Camões. Mas hoje não é assim, hoje Camões encontra-se com os portugueses na escola. E isto não pode ser esquecido.
[O ensino de Camões como objeto de estudo e de formação de professores]
Por isso, o ensino de Camões não pode ser considerado uma área menor, nem em termos de impacto cívico, nem em termos do objeto de pesquisa. Eu recordo-me sempre, e há aqui pessoas que se lembram também, porque vejo aqui alguns cabelos quase tão grisalhos como os meus, mas recordo-me quando organizávamos reuniões internacionais de camonistas: organizávamos por temas - havia um painel para a épica, outro painel para a lírica, outro para qualquer outra coisa, e depois… e o ensino? Tínhamos que encontrar no final, era sempre no final, alguém que viesse falar do ensino. O ensino era sempre uma “côdea”, o ensino era sempre um acrescento, um ornato. […] Podíamos organizar uma reunião Internacional de camonistas e normalmente chamávamos quem? Chamávamos professores do ensino secundário para falar de ensinoo. E os professores vinham normalmente dar testemunho de experiências pedagógicas, recordo-me da saudosa Amélia Pinto Pais, que era um presença obrigatória nessas reuniões internacionais de camonistas. Mas raramente vinham dar conta de projetos de pesquisa que desenvolvessem; o ensino não era considerado um assunto suficientemente nobre para suscitar pesquisa, pesquisa autónoma. Partia-se do princípio de que que quem sabia alguma coisa de Camões sabia também ensinar, e que o ensino era a transposição daquilo que se aprendia ou daquilo que se investigava ou daquilo que se lia, para as turmas que se tinham à frente. E foi este o estado em que eu comecei a lidar com as questões do ensino nas décadas de 80-90.
[Camões no currículo escolar. O ensino dos Clássicos]
O terceiro pressuposto é este, a forma como Camões permanece nos programas escolares tem conhecido poucas alterações em termos de conteúdo, em termos de aproximação didática. Há aqui um interregno - que o Rui conhece bem - nos anos 90, em que houve realmente uma desvirtuação, deveria dizer “sacrílega”, mas sacrílega é pouco para o que se verificou nesses anos, depois houve uma recuperação, e hoje Camões está no 9.º ano e no 10.º ano, Os lusíadas são estudados no 9.º ano, durante pelo menos dois meses e meio, depois voltam a ser estudados no 10.º ano, e a lírica de Camões também é estudada no 10.º ano. Portanto, se nos perguntarem, estão descontentes com a quantidade de conteúdos camonianos que estão presentes nos programas?, é difícil dizer que estamos descontentes, se tivermos em conta apenas o critério da quantidade.
Só que é altura de debater a situação. Pode haver aí algo de certo, pode haver aí algo de errado, estamos 2024 e quando se diz que os conteúdos camonianos que existem hoje no 9.º ano não diferem muito dos que estavam nos programas em 1980, e não diferem, é só fazer uma comparação entre o que estava nos programas de português e 1980 e o que está nos de 2024. Isto pode suscitar, desde logo, matéria de debate: está a mesma coisa em 2024 que estava em 1980? Não estou dizer que esteja errado, não estou dizer que esteja certo, estou a dizer que justifica debate, quer dizer, justifica alguma ponderação. Então, justifica-se um esforço de reconversão?, o mais natural é pensar que em 2024 os conteúdos não podem ser exatamente os mesmos, ou pelo menos não podem estar dispostos da mesma forma ou não podem estar (e a Cristina também falou nisso) submetidos aos mesmos objetivos que estavam em 1980. E em que sentido é que esse esforço de reconversão deve ser feito? Vamos alterar? Vamos mudar? Vamos calibrar? “Calibrar” é uma palavra de que eu gosto muito, porque permite um equilíbrio; aliás o nó da palavra está lá: equilíbrio, calibrar, permite o equilíbrio entre permanência e a mudança.
Devemos para tanto, por exemplo, espreitar, o que se faz lá fora em termos de ensino de Clássicos? É que nós espreitamos muito pouco. O que acontece com o ensino dos Clássicos na Espanha, com o ensino dos Clássicos na Itália, com o ensino dos Clássicos por essa Europa fora? E devemos também integrar a questão do ensino, os conteúdos camonísticos, no contexto do ensino da literatura em geral, e das Humanidades, num sentido ainda mais amplo. Quer dizer, continuarem a assinar Camões como, ou ignorando que nos últimos anos se verificaram alterações grandes no domínio do ensino da literatura, no domínio da presença dos conteúdos humanísticos nos programas escolares, pode não ser uma boa ideia.
ALGUNS PONTOS QUE PODEM SUSCITAR REFLEXÃO / RECOMENDAÇÕES
Passo à segunda parte, que são as questões que podem suscitar debate, podem suscitar ponderação. Até aqui limitei-me a enunciar pressupostos, e não tomei posição.
[Reforçar o esforço de hospitalidade]
Em primeiro lugar, a primeira sugestão que eu queria deixar é que quem ensina Camões hoje tem, em relação a quem assinava Camões há 40 anos, uma necessidade imperativa de reforçar o esforço de hospitalidade. “Hospitalidade” é um conceito que tem é implicações filosóficas, que se aplica a tudo, que se aplica à vida. Todos nós temos o dever de ser hospitaleiros, mas quem é professor tem esse dever acrescido e quem ensina Camões ainda mais, porque o os alunos que entram numa sala e que têm de estudar, naquela tarde quente de maio, o Velho do Restelo, tem que ser bem acolhidos, porque eles não estão nada virados para aí. Então tem que haver um esforço de integração, de acolhimento, sem o qual esse trabalho educativo – é um trabalho educativo, falar do Velho do Restelo, pode ser um trabalho inglório, pode ser um trabalho ineficaz. A hospitalidade, para além de ser um imperativo de justiça, é também uma promessa de eficácia. Portanto, não encaro a hospitalidade - Devemos ser hospitaleiros porque devemos ser bonzinhos – não, em termos de comunicação didática, a hospitalidade traduz-se em eficácia, porque significa um esforço de captação, um esforço de adentramento dos alunos dentro das matérias, que produz, em geral, muito bons resultados.
E como é que o hospitalidade pode ser exercida? A hospitalidade pode ser exercida, desde logo, reforçando a formação de professores. Nós estamos numa casa que conhecemos mal. Podemos ser hospitaleiro nessa casa? Não. Quer dizer, podemos fazer um esforço, ir lá 5 minutos antes, ver como é que é a sala, e quando lá chegara o convidado já nos demos conta de que há um degrau a entrada e, pelo menos para aquele perigo, nós conseguimos advertir o convidado. Mas onde nós podemos ser verdadeiramente hospitaleiros é num espaço que dominamos, é na nossa própria casa. E isso tem a ver com a formação de professores: um professor para ensinar Camões tem que saber Camões. Quer dizer, tem que antecipar a reação dos conteúdos que transmite, e ver até que ponto é que os conteúdos podem conter degraus que podem originar tropeções. Portanto, para mim, o fundamento da hospitalidade pedagógica é o conhecimento. O conhecimento - e não é o conhecimentozinho, não é aquele conhecimento em que eu vou ler uma coisa, e com isto que vou ler em 10 minutos eu já consigo alinhar uma aula. Eu assim não consigo ser hospitaleiro, porque não consigo antecipar todas as reações que podem surgir da parte da audiência discente. Eu tenho que fazer realmente um grande esforço de formação para dominar as matérias: tenho que vir a esta sala e ver bem os pormenores do espaço; para depois poder acolher quem entra nessa sala.
[Revisão da atitude pedagógica. Investimento na interpretação]
Revisão da atitude pedagógica. Eu não tenho, ao contrário do meu colega de mesa hoje, a prática do ensino de Camões a jovens de 14-15 anos; vou muitas vezes a escolas, gosto de ir a escolas – é das coisas que mais gosto de fazer, e querem uma confissão?, às vezes quando estou aqui nas funções em que agora estou investido, o remorso maior que sinto é não ter tempo para continuar a fazer o que fazia. Passada esta confidência, que eu espero que não “transpire” para lado nenhum, o que é que eu vejo em geral? Rui, desminta-me se isto for caricatura da minha parte. As práticas pedagógicas centradas em Camões têm uma componente descritiva muito forte, quer dizer, um professor leva um soneto de Camões para a aula e empenha-se muito bem a identificar os temas do soneto, e enquanto os alunos não chegam aos temas todos, ele não larga, porque se ele levar na cabeça que está lá o tema da solidão e os alunos não chegam a solidão, ele não desarma enquanto os alunos… - é solidão!, porque ele já trazia aquilo pré-figurado. Não sei se isto é caricatura se não é, mas depois segue-se outro exercício descritivo que é o exercício da descrição retórica – são as figuras, são os processos retóricos implicados, e depois toca a campainha e a campainha faz sair os alunos aliviados. E eu ponho-me a perguntar, para que é que isto serve? Que objetivos verdadeiramente pedagógico é que serve uma prática deste gênero? Eu tenho alguma coisa para contrapor a isto.? Atrevo-me a ter, mas também não sei se não é ousadia minha, um esforço maior na interpretação. A interpretação é o exercício mais nobre que os seres humanos podem cultivar; é interpretar mais e descrever menos. Se o tempo não dá para descrever e para entre interpretar, pelo menos que se selecionem os aspectos descritivos dos quais eu depois posso tirar partido entre interpretativo. Se eu identifico uma metáfora ou se identifico qualquer outra coisa, e se depois não tenho capacidade ou não tenho possibilidade de interpretar esse artifício formal que identifiquei, para que o identifiquei antes? Só para me colocar num plano superior ao aluno que não sabe o que é um oximoro e eu sei? Está lá um oximoro, eu devo tirar partido interpretativo do oximoro. Ou se está uma metáfora em vez de uma imagem, ou uma imagem em vez de uma metáfora, eu devo tirar partido disso e ensinar os alunos a interpretar um texto é ensinar os alunos a interpretar a vida.
A disciplina de Português tem sobre todas as outras, peço desculpa a todos os colegas que não têm a sorte de ser professores de Português, mas são de outras matérias onde a interpretação também é muito necessária - mas os professores de Português têm este privilégio supremo, que é o de mostrar o que não se vê; tirar partido daquilo que não é evidente, o de chamar a atenção para o degrau escondido. E, portanto, se eu pudesse estabelecer ou indicar uma estratégia, eu diria mais interpretação, menos descrição, mais intensidade, menos a extensão.
Não posso agora levar mais longe esta a minha ideia, porque tenho receio do que ela depois cause engulhos ou condicione o debate que eu gostaria muito que se instituísse a propósito destas comemorações. Como é que nós estamos a ensinar a Camões? Devemos resignar-nos com a forma como estamos a ensinar? Ou devemos estabelecer objetivos diferentes para o ensino de Camões. Por exemplo, a questão da interpretação pode levar-nos, “pode” - eu não digo que nos leva obrigatoriamente, mas pode levar-nos a encurtar os conteúdos. Porque interpretar leva mais tempo do que descrever. Portanto, quando eu sugiro que se interprete mais e se descreva menos, é que – quando eu vejo, O que é isto? É uma metáfora. E acabou. – Vamos interpretar a metáfora. Interpretar a metáfora leva mais tempo; se leva mais tempo pode ser que os conteúdos camonianos que atualmente figuram no 9.º ano e no 10.º ano tenham de ser encurtados. Eu não estou a formular uma sugestão, ou a ser sequer assertivo, estou a dizer que a sugestão da interpretação pode conduzir-nos a este ponto.
[Ajustamento dos temas aos interesses e às expectativas dos alunos]
Por último, ou em penúltimo, o ajustamento dos tópicos que figuram nos programas aos interesses e às expectativas dos alunos. Eu já tive sobre isto de uma posição diferente. Acho que Rui se lembra disso, eu já tive uma posição um bocadinho mais rígida, a posição nessa altura era a de que entre anacronizar os textos e levar os alunos ao encontro dos textos, era sempre muito mais proveitoso levar os alunos pela mão ao encontro dos textos e da mundividência em que eles assentam, com jeito, a tal hospitalidade, ao séc. XVI. Hoje já acho que é possível um caminho intermédio e acho que é possível, é indispensável ter em conta os interesses, as expectativas, a diversidade dos públicos pedagógicos que hoje temos à nossa frente. Não é possível ignorar isso. Quando nós andávamos na escola, quando eu andava na escola, todos vínhamos de duas freguesias e conhecíamo-nos todos, e o professor não tinha dificuldade nenhuma porque o público era homogéneo. Hoje, um professor do 9.º ano pode ter à sua frente alunos de dez nacionalidades diferentes. Como ensinar o Velho do Restelo a alunos nepaleses, a alunos, ucranianos, a alunos que têm matrizes culturais completamente diferentes das nossas? Não ter isto em conta, é um caminho quase certo para o fracasso.
Portanto, o que eu defendo é um ajustamento dos tópicos aos interesses e às expectativas dos alunos. Isto não é fácil, mas é absolutamente imprescindível.
[Investigação. Formação]
E por último, investigar. Faz-me muita impressão que os professores do ensino básico e secundário não tenham oportunidade de investigar; não tenham tempo, não tenham incentivos. Há dois anos atrás, ainda não se falava de comemorações de Camões e eu perdi a duas pessoas que trabalhavam no meu centro de investigação que investigassem pelos centros de formação, todos do país, para me dizerem quantas ações de formação de teor camonístico estavam a ser oferecidas. Nem uma. Ou seja, em 2022, os centros de formação espalhados pelo país e pelas regiões autónomas não achavam necessário oferecer uma única ação da formação do teor camonista. Diziam, estamos na ressaca da pandemia, houve uma verba extra para inundar os centros de formação com ações que tivessem a ver com a transmissão pedagógica à distância; não há lugar para mais nada. Então eu pedi a essa pessoa que fizesse uma pesquisa retroativa, que fosse há quatro anos atrás, também não havia. Ou seja, Camões, os conteúdos camonistas têm estado ausentes da formação contínua. Não há incentivos, não há estímulos para que os professores se dediquem a investigar, tenham um tempo, tenham um semestre, tenham um ano. Está previsto na lei, a licença sabática existe, mas não é aplicada. E sem que os professores tenham esse estímulo, tenham esse ar de hospitalidade que os ministérios deveriam ter – Olhe, dedique-se durante um ano a investigar. Apresenta um plano, e há uma comissão que seleciona planos, que depois têm repercussão na qualidade das práticas letivas.
Falei de pressupostos, falei de recomendações e pela reação do Rui acho que deixei duas ou três coisas com que ele não concorda e eu fico todo contente com isso.
[...]
para saber +
in Luís de Camões - Diretório de Camonística, 9.06.2025
Redação: 1.11.2025

