Toda a China: descobrir desvendar entender o mundo chinês / António Graça de Abreu
2 volumes, Lisboa: Guerra & Paz, 2013-2014
"4.º centenário de Luís de Camões comemorado na China
RELATO | do Diário
por António Graça de Abreu
12 SET. 1980
"Nos últimos dias de junho passado tive a honra de participar numa pequena reunião e convívio luso-chinês realizado na Faculdade de Línguas Estrangeiras de Pequim que teve como motivo da comemoração o 4º. Centenário da morte do maior poeta português, Luís de Camões (1524-1580).
Foi um encontro muito simples, mas cujo significado e importância merecem destaque no contexo das relações culturais entre Portugal e a China. Quatro alunos dos cursos de Língua e Cultura Portuguesas da Faculdade de Línguas Estrangeiras de Pequim disseram um soneto e uma redondilha de Camões, "Alma minha gentil que te partiste" e "Descalça vai para a fonte", em português e numa bonita tradução para chinês.
Vieram a esta Faculdade, o embaixador de Portugal na China, Dr. António Ressano Garcia, o conselheiro da Embaixada, Dr. João de Deus Ramos, a profª. Conceição Afonso, eu próprio, o vice-director da Faculdade e decano dos cursos de Estudos Ibero-Americanos, prof. Liu Zhengquan e, fundamental, as quase quatro dezenas de chineses que na capital da China estudam a língua portuguesa. Sob a égide de Camões, as pessoas encontraram-se, conversaram, deram conteúdo a uma das mais bonitas palavras da língua chinesa, youyi 友 谊, que significa "amizade."
O Embaixador de Portugal na China referiu a satisfação que sentia, por, a propósito de Luís de Camões, se poder encontrar com tantos jovens chineses que estudam português e que no futuro desempenharão um papel importante nas relações não só entre Portugal e a China, mas entre a China e o vasto mundo da língua portuguesa.
Que interesse poderá ter hoje recordar, na República Popular da China, o grande poeta português quando este país se procura projetar no futuro através das "quatro modernizações"?
Os maiores poetas – na China um Qu Yuan, um Li Bai, um Du Fu, em Portugal um Camões ou um Fernando Pessoa – estes, os maiores poetas não morrem, são passado, presente e futuro e continuam, século após século, a ser a voz de todo um povo.
Entender Camões é, quatrocentos anos depois da sua morte, conhecermo-nos melhor, como cidadãos à deriva, ou de pés bem assentes na terra, no embate, no diluir pelo mundo. Vamos ver porquê.
Luís de Camões, fidalgo pobre, valdevinos, desregrado e brigão, apanhado pela engrenagem complexa da sociedade do seu tempo, participou ativamente, até à exaustão, na grande aventura dos Descobrimentos Portugueses. Antes de quaisquer outros povos, os homens do Douro e do Tejo chegariam por mar, às costas de África, América, Índia e também China.
Aqui em Pequim encontrei alguns amigos que eram de opinião que Camões teria sido um precursor do colonialismo português. É verdade que durante o longo governo dos reaccionários Salazar e Caetano, derrubado em 1974, o poeta foi transformado numa espécie de arauto do expansionismo português. De facto, em Os Lusíadas, o grande poema épico da nossa língua, Camões cantou "o ilustre peito lusitano" e os que "entre gente remota edificaram / Novo Reino que tanto sublimaram." Mas Camões também reconhece, nas últimas estrofes dos mesmos Lusíadas, que o Portugal que cantava estava metido "no gosto da cobiça e da rudeza / duma austera, apagada e vil tristeza". Camões, profundamente humano, nunca rejeitou, antes assumiu plenamente, a contradição das palavras e da vida.
Camões é o português de corpo inteiro, aventureiro, apaixonado e triste, cavaleiro andante errando pelas mais estranhas paragens do mundo, contraditório, lapidarmente humano. É o poeta que traduz, em versos maravilha, o que de bom e de mau se conjugam no génio português. Homem do Renascimento, Camões buscou uma sociedade mais justa. Um campeão dos humildes, "um socialista antes do tempo", como lhe chamou, talvez com um certo exagero, o camonista brasileiro Afrânio Peixoto. Teve perfeito conhecimento dos males do mundo, porque os viveu, estudou e sofreu e diz:
Não me falta na vida honesto estudo
Com longa experiência misturado…
Como afirmou o prof. Rodrigues Lapa, "Camões inseriu corajosamente em Os Lusíadas alguns versos que nos asseguram uma posição político-social de cidadão vigilante:
Vejamos no canto VII de Os Lusíadas:
Também não cuideis que cante
Quem, com hábito honesto e grave, veio,
Por contentar o Rei no ofício novo
A despir e roubar o próprio povo!
Nem quem acha que é justo e que é direito
Guardar-se a lei do rei, severamente,
E não acha que é justo e bom respeito
Que se pague o suor da servil gente.
Camões, um colonialista? Se participou na grande expansão portuguesa pelo mundo, que de resto abriu caminhos ao desenvolvimento da Humanidade, isso deveu-se à dinâmica do período histórico em que viveu. Se é verdade que os Portugueses oprimiram outros povos na sequência dos Descobrimentos, Camões assumiu uma atitude crítica e não foi um elemento passivo capaz de assistir, impávido e sereno, às muitas injustiças cometidas. Se tal não tivesse acontecido, o poeta não teria morrido pobre e miserável, vivendo praticamente de esmolas, de caridade, de amigos.
Como homem do Renascimento, Camões foi o poeta de um mundo novo e diferente, mais amplo, mais vasto, que então começava, se abria todos os homens.
Na sua obra lírica, foi também o grande poeta do Amor, e da negação do Amor. Ninguém como ele, na língua portuguesa, cantou o Amor, a complexidade de quem ama e é amado, as desilusões, o sofrimento, as "memórias da alegria", essa pura paixão tão portuguesa de amar e não amar.
O jovem Friedrich Engels, companheiro de Marx, numa carta escrita a 30 de Abril de 1839 ao seu amigo Wilhelm Graeber, diz que está a estudar a língua portuguesa que "é como ondas do mar sobre flores e prados" e depois confessa-lhe que gosta de "se sentar num jardim com o o sol batendo-lhe nas costas lendo os Lusíadas." O que levaria Engels a gostar de Camões e de Os Lusíadas?
Um grande historiador português deste século, Jaime Cortesão, dá uma das muitas respostas possíveis:
"O português de Camões foi moldadado pelas águas e pelos ventos, foi enriquecido pelas verdades de outras gentes e alumiado pelas estrelas de todos os céus. É o português-tritão que se misturou a todas as ondas e a amargo sargaço dos oceanos; é o português suave que se diria respirar como as velas, ao sopro perene dos alisados; é o português amoroso que lançou os fundamentos do Império no sangue de outras raças; é o português para quem o perigo é o sal da vida e todos s homens são camaradas; e a Pátria, na própria frase do poeta, é toda a Terra."
Em Pequim, Junho de 1980, quatrocentos anos depois da morte de Luís de Camões, portugueses e chineses recordaram o grande poeta que soube moldar o génio de todo um povo nessa língua que, como escreveu Engels, "é como as ondas do mar sobre flores e prados."
In Revista China em Construção, edição em português
Edições de Pequim, setembro de 1980.
Texto reproduzido em:
Luís Graça & Camaradas da Guiné, 19.04.2019
com o título de post:
"Guiné 61/74 - P19698: Os nossos seres, saberes e lazeres (317): Excertos do
"meu diário secreto, ainda inédito, escrito na China, entre 1977 e 1983" (António Graça de Abreu)
- Parte II: 12 de setembro de 1980: o 4º centenário da morte de Luís de Camões".
Redação: 19.10.2024