O poeta para os mais jovens
por José António Gomes
Em visita recente a uma escola de 1.º ciclo, ante um grupo de crianças de 3.º e 4.º anos de escolaridade habituadas à leitura (pequena burguesia urbana), descubro – confesso o meu escândalo – que ninguém sabia quem era o maior poeta português. E o nome de Camões não soava familiar. Algo vai mal, pensei. E recuei à minha meninice. Lembro-me bem de, na instrução primária, me terem familiarizado com a figura de Camões e com as lendas a ele associadas. Lembro-me de, no livro de leitura da primária, constar o famoso sonetilho de João de Deus, em pentassílabos, que começava assim: “Camões comparado / Aos mais escritores / Nem entre os maiores / Foi sempre igualado”.
Lembro-me do retrato desenhado do vate com o inevitável olho direito vazado, coisa a que nenhum miúdo ficava indiferente. E lembro-me de, com 9 anos, ter colecionado cromos para uma caderneta que continha uma narrativa gráfica, com texto do conhecido José de Oliveira Cosme (célebre autor de As Lições do Tonecas) e desenhos de Carlos Alberto. Sob o título Camões (Agência Portuguesa de Revistas, 1966), oferecia-se uma biografia romanceada e fantasista do poeta, que o apresentava como valente soldado, grande amador de damas, aventureiro e, sobretudo, enorme poeta.
Aí pude ler os primeiros fragmentos da épica e principalmente da lírica. Comecei a copiá-los para bilhetinhos com a intenção de os oferecer, na catequese, a esta ou àquela menina... Pois se também Camões tinha querido a tantas... – imaginava eu. Certo é que, já no liceu, ninguém, aos 10-11 anos, estranhava que se lesse um ou outro poema breve da lírica ou um fragmento de Os Lusíadas. Aos 13 e 14 anos, já se liam redondilhas, este ou aquele soneto. Com 14-15 anos, vinha a leitura de Os Lusíadas.
Defendo, pois, que na escola (e em família) se leiam e memorizem pequeninos fragmentos da lírica e da épica; escreva-se no quadro uma metáfora ou um ou dois versos do poeta por dia; afixe-se na sala de aula o seu retrato; exiba-se Os Lusíadas como livro importante e simbólico na casa e na escola. Fomente-se a curiosidade. Não se passe por cima do significado do 10 de Junho. Em suma, familiarize-se a criança com Camões desde cedo, muito cedo. E não se desvalorize a sua disposição para a fantasia e o sonho. Desperte- se, isso sim, a curiosidade pela singular aventura humana do poeta, mesmo sabendo que quase tudo (mas não tudo) se ignora sobre a sua vida. E, para tal, recorra-se aos livros. Não se receie a fantasia nem a lenda. Lá virá, em devido tempo, a idade do primado da razão e da cientificidade.
NÃO FALTAM LIVROS PARA A INFÂNCIA E A JUVENTUDE que ajudem na consecução desse propósito. No 1.º período do ano letivo em que Os Lusíadas iriam ser abordados, esse ilustre professor e metodólogo que foi Luís Amaro de Oliveira (que tertuliava com Régio, Manoel de Oliveira e Agustina, na Póvoa de Varzim, e era especialista em Cesário) recomendava aos seus estudantes de 14/15 anos – que sorte ter sido um deles – a leitura de Os Lusíadas de Luiz de Camões Contados às Crianças e Lembrados ao Povo (1930), a adaptação em prosa de João de Barros, com chancela da Sá da Costa e belas ilustrações de Martins Barata – um clássico da literatura infantojuvenil republicana, ainda que saído já em tempo de ditadura.
No 2.o período, conhecida a diegese, o acesso à obra e à sua estrutura tinha o caminho aplanado. E aí, entre mil coisas essenciais, aprendia-se história, mitologia, retórica, estilística e o que era a sintaxe poética e latinizante do poema. Precisamente dividindo orações – coisa que tanto engulho incompreensível causa a não pouca gente. E em simultâneo degustava-se, pela mão de Luís Amaro de Oliveira, a expressividade e beleza da linguagem, os sentidos, a humanidade e a sobre-humanidade dos diferentes episódios.
Nos dias que correm, não faltam adaptações que podem configurar uma pré-leitura de Os Lusíadas, talvez necessária. Por exemplo, “em oitava rima de matriz camoniana”, o belo texto Os Lusíadas para Gente Nova (Gradiva, 2012), de Vasco Graça Moura; e também Os Lusíadas Contados aos Jovens (Europa- América, 1982), de Adolfo Simões Müller, com ilustrações de Fernando Bento. Dois casos mais: Os Lusíadas em Prosa (Areal, 2000), de Amélia Pinto Pais; e Era uma vez um rei que teve um sonho – Os Lusíadas contado às crianças (Dinalivro, 2007), de Leonoreta Leitão.
E convirá não esquecer a adaptação para banda desenhada de José Ruy, Os Lusíadas (Âncora, 2009), que faz uso do texto camoniano e cuja 1.ª edição data dos anos 80. Refira-se ainda A Batalha de Aljubarrota (Civilização, 1985), narrativa literária ilustrada por expressivas aguarelas de Marques Cruz, com texto de Luísa Dacosta. Inspirado em Fernão Lopes e no Canto IV de Os Lusíadas, o narrador conta e descreve, numa prosa emotiva e sensorial, o famoso recontro de Aljubarrota.
NO CAMPO DAS BIOGRAFIAS ROMANCEADAS, merecem leitura atenta Luís de Camões (Edinter, 1998, ilustrações de António Martins), de José Jorge Letria, que publicou ainda Luís de Camões: o Talento, a Pobreza e a Coragem (Glaciar, 2021), com imagens de Marta Torrão. Leia-se também o último livro editado em vida por Maria Alberta Menéres, Camões, o Super-herói da Língua Portuguesa (ASA, 2010), com imagens de Fernanda Fragateiro e José Fragateiro. Todos se distinguem pela poeticidade que contamina a narração e pelas discretas mas conseguidas pistas que abrem para uma primeira leitura de Camões, até por incorporarem trechos do poeta no texto principal. Um antecedente existia já: Aventuras do Trinca-Fortes: pequena história de Camões e do seu poema (Tavares Martins, 1946), de Adolfo Simões Müller, com belas ilustrações de Júlio Resende a partir da 2.ª edição, de 1953.
Poderíamos ainda apontar as criações de matriz biográfica em banda desenhada, que não são poucas: Camões: sua vida aventurosa (1972), de José de Oliveira Cosme & Carlos Alberto, reeditado pela Bonecos Rebeldes, em 2022; Camões aos Quadradinhos (Agência Portuguesa de revistas, anos 70), de Rui Pimentel & Jorge Serrão; Com a Pena e com a Espada – Camões e Afonso de Albuquerque (Futura, 1983), de Adolfo Simões Müller & Fernando Bento; e ainda Camões: de vós não conhecido nem sonhado? (Plátano, 2008), de Jorge Miguel.
Como se vê̂, recursos não faltam para familiarizar os mais jovens com Camões e para os motivar para a leitura da sua escrita inigualável.
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Redação: 6.09.2024