Psique reanimada pelo beijo de Eros, 1793
Por António Canova (1757 -1822)
Museu do Louvre, Paris
O MOTE – o soneto de Camões
Transforma-se o amador na cousa amada,
por virtude do muito imaginar;
não tenho, logo, mais que desejar,
pois em mim tenho a parte desejada.
Se nela está minh’ alma transformada,
que mais deseja o corpo de alcançar?
Em si somente pode descansar,
pois consigo tal alma está liada.
Mas esta linda e pura semideia
que, como um acidente em seu sujeito,
assim co a alma minha se conforma,
está no pensamento como ideia:
o vivo e puro amor de que sou feito,
como a matéria simples, busca a forma.
LUÍS DE CAMÕES
(1524-1580)
In: Camões, Sonetos. Introd., fixação do texto, comentário e notas de Maria de Lourdes e José Hermano Saraiva. Mem Martins, Col. Biblioteca Universitária, 37, Europa América, 1985, p. 102.
AS VOLTAS – o poema "Tríptico" (parte I) de Herberto Helder
feroz sorriso, os dentes,
as mãos que relampejam no escuro. Traz ruído
e silêncio. Traz o barulho das ondas frias
e das ardentes pedras que tem dentro de si.
E cobre esse ruído rudimentar com o assombrado
silêncio da sua última vida.
O amador transforma-se de instante para instante,
e sente-se o espírito imortal do amor
criando a carne em extremas atmosferas, acima
de todas as coisas mortas.
Transforma-se o amador. Corre pelas formas dentro.
E a coisa amada é uma baía estanque.
É o espaço de um castiçal,
a coluna vertebral e o espírito
das mulheres sentadas.
Transforma-se em noite extintora.
Porque o amador é tudo, e a coisa amada
é uma cortina
onde o vento do amador bate no alto da janela
aberta. O amador entra
por todas as janelas abertas. Ele bate, bate, bate.
O amador é um martelo que esmaga.
Que transforma a coisa amada.
Ele entra pelos ouvidos, e depois a mulher
que escuta
fica com aquele grito para sempre na cabeça
a arder como o primeiro dia do verão. Ela ouve
e vai-se transformando, enquanto dorme, naquele grito
do amador.
Depois acorda, e vai, e dá-se ao amador,
dá-lhe o grito dele.
E o amador e a coisa amada são um único grito
anterior de amor.
E gritam e batem. Ele bate-lhe com o seu espírito
de amador. E ela é batida, e bate-lhe
com o seu espírito de amada.
Então o mundo transforma-se neste ruído áspero
do amor. Enquanto em cima
o silêncio do amador e da amada alimentam
o imprevisto silêncio do mundo e do amor.
- O amor em visita. - "plaquette" de 14 p. - Lisboa: Contraponto, 1958.
- A colher na boca. Lisboa. Edições Ática, 1961.
- Ou o poema contínuo. Lisboa: Assírio & Alvim, 2004.
- [Texto transcrito da Web, confrontando várias fontes]
LEITURAS
“Mas importa não esquecer que, tal como os surrealistas incorporam, transformando-a, a tradição petrarquista, Herberto Helder o mesmo fez pela via camoniana, como mostra um poema anteposto a O Amor em Visita, no livro A Colher na Boca, de 1961, em que o republicou. O soneto intertextual e paratextualmente reescrito – o célebre "Transforma-se o amador na cousa amada ... " - insere-se na verdade numa temática petrarquizante, que já tinha tido entre nós uma afloração, antes de Camões, no Cancioneiro Geral. As transformações a partir dele operadas por Herberto Helder são significativas do seu trabalho poiético de mutação das formas:
"Transforma-se o amador. Corre pelas formas dentro.
E a coisa amada é uma baía estanque.
É o espaço de um castiçal,
a coluna vertebral e o espírito
das mulheres sentadas."Como Camões, Herberto Helder poderia escrever:
"E o vivo e puro amor de que sou feito,
Como a matéria simples busca a forma."É uma forma poética nova que a matéria do amor e do erotismo, de desejo em desejo, sempre busca, numa língua outra, que de metamorfose em metamorfose o poeta reinventa.”
José Augusto Seabra
O amor revisitado num poema de Herberto Helder
Máthesis 6, 1997, Viseu, p. 190.
Camões transformado
“Acresce que o tipo de leitura que Herberto Helder faz de Camões se situa no âmbito de uma transgressão, pois o código do amor idealizado que normalmente se lê no soneto de Camões é aí erotizado, tornando-se subversiva. Por isso, ao desmistificar deste modo o cânone literário, Herberto Helder confronta ainda o leitor com a passividade associada à tradição, e, ativando-a, contribui para a sua transformação.
[...]
... não se trataria apenas de uma leitura desmistificante do amor platónico, mas também uma leitura do próprio processo de busca que o poeta realiza na escrita. E isso faz-se através da posse do texto, esse espaço «baía» onde o amador-poeta se renova e se transforma, com ele, transformando o mundo.”
Para saber +
- «Transforma-se o amador na coisa amada», com seu - poema original em português, in Poetry International.
- The lover transforms – tradução do poema de Herberto em inglês, in Ibidem.
- SEABRA, José Augusto (1997) O amor revisitado num poema de Herberto Helder, Máthesis, n.º 6 (1997), Viseu, Univ. Católica Portuguesa - Fac. Letras, 183-91.
- TORRES, Rui (2006) Camões transformado e remontado, Revista Callema, n.º 1 (Outono-Inverno) 58-64. / Reprod. em TORRES, Rui, org. (2008) Enquadramento teórico e contexto crítico da PO.EX. – Volume 1: Poesia Experimental Portuguesa: cadernos e catálogos. – Ebook do Projecto CD-ROM da PO.EX; Refª POCI / ELT / 57686 / 2004, p. 90-96.
- MAFFEI, Luís (2006) Por que não falte nunca onde sobeja, ou melhor, excesso e falta na lírica de Herberto Helder, Scripta, vol. 10, n.º 19 (2.º sem. 2006), Belo Horizonte, 189-202.
- GUEDES, Maria Estela (2015) Na morte de Herberto Helder: o rio camoniano, Revista TRIPLOV de Artes, Religiões e Ciências, nova série, n.º 51(abril-maio 2015).