2022/07/01

Por que nem tudo seja falar-vos de siso... - carta, de Lisboa, a um clérigo algures no Reino, mandando novas "de folgar" da cidade


Por que nem tudo seja falar-vos de siso...

“Carta que hum Amigo a outro manda de novas de Lix.a” (Códice Varejão, 156r-157v)
Carta VI, “enviada de Lisboa para algures no Reino”, a “um clérigo”, em “20 de maio de 1551” (F. de Saavedra, 2022)



Por que nem tudo seja falar-vos de siso, após as novas que vos mandei de África e da Índia, que cá soaram, agora vos mando estas de folgar, que à orelha vos hajam de soar melhor, e ainda que escrever-vos isto seja empresa baixa, e de baixo sujeito, pois é praguejar de putas, contudo não terei culpa, senão se ma vós causardes, com me descobrirdes, por que eu pera vós só o escrevo, com quem posso e devo falar tudo, e assi desta cautela de segredo, e não seja necessário ficardes vós culpado comigo, nem eu desculpado convosco, e que eu não seja destas cousas o mais diligente solicitador desta terra: nunca faltam más línguas que vos fazem tudo em que vos pez.

Bem sabeis já como é entrada nesta cidade Madama del Puerto, com a Senhora Barbórica sua filha, e também sabeis que este sobrenome “del Puerto”, não cobrou ela por cem mil milagres, que nele fizesse, onde muito tempo residiu em seu ofício, mas por cem mil velhacarias que estão significando cem mil açoutes, que por elas lhe pintaram nas costas, com trombetas, por que a Senhora Bárbora foi mais vezes cosida e renovada por Sua Madre que umas botas de um escudeiro, e assi a vendia por “buena”. E, porém, a Puta Velha com o furto que lhe tomaram nas mãos lançaram-lho nas costas com trombetas, até que por vários casos, “per tot discrimina rerum”, tornou aqui a aportar a Lisboa – Ó má Lisboa, que é um ninho velho, e domicílio antigo de putas antigas, e aqui como dizem das cegonhas, as moças mantém as velhas, foi logo a Sra. Bárbora assoalhada por essas estações, e perseguida de alguns novéis, que a não conheciam, que aos veteranos não podia ela enganar, pera estes modernos que digo, usou logo a puta velha de um ardil muito bom, que foi fazer a filha casada com um Mártire do Alentejo, que não reside aqui, e diz ela aos seus devotos, que é isto um pão pera os cães, e assim é, que com este pão feitiço, abre e fecha quando quer, e se nega, e se defende, e ofende, e espanca, os tristes dos Canitos novos que com ela gastam o seu, com estes tem seus tratos, e comércios, e c’os mundanos maciços que sabem o erro, tem seus passatempos, e manda tanger e cantar a Senhora Bárbora, descantando sobre o Monte de Sião, e “de super Judeorum turbam”.

E olhai esta declaração, que nem Ascênsio nem Donato a puderam dar melhor, os praguentos de agora, se não entremetem latinzinho hão que não escrevem bem, e eu assim o faço imitando mais seu estilo que o meu, por que já em escrever-vos, e “nos aliquod nomenque decusque gessimus”, e vós já me gabastes mais, do que vos eu gabo, e isto basta pera vos escrever agora, como quiser, sem guardar ordem, nem ordens, conforme ao lugar, e estado, em que agora viveis,

E eu vivo noutro, de um morcego sem ser ave nem rato, a culpa disto dá-la-hão uns ao triste que passa a pena e outros aos acontecimentos da fortuna, que não respondem sempre aos fundamentos de cada um, ainda que sejam bons, outros a darão aos corações humanos que nunca se satisfazem, mas enfim eu sei cuja lela é.

E tornando ao nosso tema, digo que a Senhora Bárbora, “y la puta de su Madre”, vem tão avante no putarismo, que podem ler de cadeira, e com seus donaires ora portugueses ora castelhanos, nunca lhe faltaram em que empreguem suas letras, e suas manhas, por que neste cesto roto de Lisboa, onde elas lançam tudo, bem sabem que cada panela tem seu testinho, e que sempre neste mar magno morrem madraços que vêm picar em seus anzolos, com que elas pescam, de muitas maneiras, e como agora anda tudo de levante com estas armadas, e na água em volta pesca o pescador, elas também d’armada dão por esses coitados que hão de ir pera fora sobre as águas do mar, uns debruadinhos d’arte, a quem como sabeis pagam soldos e moradias adiantadas, com outras mercezinhas, e de maneira os tratam que como franceses; depois de lhes vazarem as bolças, de bem vestidos e louçãos que andam, os tomam e lhes despem até as couras golpeadas.

E destes, os que agora dão mais vistas e mostras, são os Ceitis, que assi chamamos aos que se agora fazem prestes pera Ceuta, e estão as casas destas Damas todas cheias destes Ceitis, de que elas fazem alguma prata. E estas falsas que “rebivem para dar muerte”, que como o trigo senão apodrece na terra não dá fruito nem espiga, assim estas velhacas parece que quanto mais podres, de seus males, e doenças, amortalhadas em seus suadouros, refrescam e reverdecem mais, porém já sabeis que “latet anguis in herba”, como se vê nelas cada dia, que são peçonhentíssimas, mas como são, são quistas, amadas e requestadas de seus amantes, mais perdidos que elas.

E das putas claustrais as que mais andam agora nos pelouros de seus folgares, são a Tarifa, a Surradeira, a Marquesa, a Sintroa, Antónia Brás, e as que chamam as folionas. “Ay” também outras Claustrais, mas mais autorizadas, as freiras, Bárbora, Luzia e outras desta laia, “ay” outras inda de mais autoridade, estas dão sua casa a onde se pagodeia, por que com as pessoas não servem, por serem já velhas, assim como Guiomar Mendes, Felipa de Bairros, Beatriz Flamenga, com suas filhas “et cum socijs suis” e às casas destas se vão apontar toda a imundícia destes que digo.

Aconteceu, pois, que esta semana, que uns certos Ceitis (que por sua honra não nomeio) ordenaram um pagode real, com Madama del Puerto, e sua filha Bárbora, e com as velhacas da Surradeira, e Marquesa, e pera isto fintaram pera a cabeça da Serpe o mais que eles puderam ajuntar, com que fizeram abastada despensa de comer, e beber, o que foi tudo levado a Orta Navia, em Alcântara, aonde havia de ser a mojanga, e por mais te honrar, Mafoma, e ser a cousa mais crespa, saíram de suas casas a tempo que “o radiante sol esparzia sus dorados Rayos sobre la haz de la tierra”, nesta ordem e concerto, “scilicet” as Damas iam ao varonil, em trajo de homens cavalheiros em quartaos, que lhe eles buscaram muito guerreiros, com seus penachos recamados de ouro e prata, por ir a cousa meia em prata e meia em Ceitis, por que ainda que os Senhores eram todos dos Ceitis, digo um deles que principalmente ia por servidor da Marquesa, “su padre era de Ronda, y su Madre era de Antequera”, ou de Guiné, a Puta Velha por guardar mais o decoro e majestade de Madre, ia de Andilhas, porém louçã e muito enfeitada, e coberta com uma capa de escarlata, mas como dizem escusada é a decoada, e por demais na cabeça do asno, por que ela não deixava de parecer quem é, ou parecia tudo a falsa Cábria, quando a vestiram nos trajos da outra, desta maneira chegarão a Navía, onde como Alcatruz se vazaram, e eram cheios, como se diz, não de água, mas de muito vinho, com que de todo, segundo fama, desenfadarão seus corpos, e dou-vos fé que me espantaram as cousas que então fizeram, muito notáveis que não são pera vos contar. E não vos pareça que ficou a madre velha de todo de fora, porque os cavalheiros eram mais que os das Damas, puseram se a fazer festa, por que também fosse regozijada.

Saíram-lhe diante uns Almogávares, que souberam desta ida, os quais eram seus Marinhanos, (e vós os conheceis, amantes destas damas) primo e irmão da Surradeira, e outros, determinando afrontarem-nos de alguma maneira, perpassaram por eles muitas vezes, a rédeas tendidas fazendo muito pó, e rocando-se com as Damas, que iam de isto em extremo receosas, por cuidarem que era isto caminho de algumas brigas, cousa no certo que as mais namora, e, porém, os cavalheiros foram todos conhecidos logo dos outros e ficaram “buenos y leales”. E assim, dissimulando cada um com sua mágoa, foram retirando-se, os Rufianos se tornaram, e a outra mais companhia seguiu sua rota, agasalhando-se aquela noite cada amante com a sua, aonde se diz que foram matraqueados dos outros de amorosas batarias; outros recontros notáveis são passados entre matantes e estas senhoras “mias”, espero informar-me bem, de um matador que me há de contar tudo, então vo-lo escreverei, mais largamente, e por agora contentai-vos com isto, por que “visa est mihi digna relata pompa”.

O vosso homem leva a vossa encomenda, a minha não esqueça a v. m. com me escrever largo, como eu faço sem medo nem vergonha,

Beijo as mãos de v. m. desta aldeia de Lisboa, a melhor do Reino, 
a 20 de maio, de 1551 anos.






Texto atualizado a partir de:

VAREJÃO, Pedro Alvarez, comp. – Códice Varejão, BNP: 9492, 156r-157v.

SAAVEDRA, Felipe de (2022) [Fac-simile e transcrição da carta], in Epistolário magno de Luís de Camões: volume I – Celestina em Lisboa. Edição crítica, analítica e comentada de – Lisboa: Canto Redondo, p. 8-15.