2020/08/23

Quanto mais tarde vos escrevo... – carta, de Lisboa a um seu amigo, em que lhe dá novas da cidade, de Luís de Camões


Quanto mais tarde vos escrevo...


“Carta IV, De Lisboa, a um seu amigo em que lhe dá novas da cidade” (H. Cidade, 1946, 4.ª ed. 1985)

 

 

Quanto mais tarde vos escrevo, tanto mais me ficais devendo, e se uma vossa vale três das minhas, é necessário que faça quatro. E quanto às novas que me na vossa pedis, aguardei pondo à parte a muita necessidade que de vós me faz ter, que já não quero que as façais por mais amizade. Sabereis que eu ando não de paz, mas de guerra, laus Deo, e porque o ladrar sem morder nesta terra é como bucha de papel, que dá grande estouro e não leva pelouro, grandes mãos de ferro, capuzes de lâminas, maças de Hércules e golpes de Amadis, tudo contra o pobre de Camões.

 

Simão Rodrigues paga soldo aos maiores matadores desta terra, os quais já de in illo tempore lhe tinham cozinhado a morte. Este soldo se paga no tesouro, scilicet em talhadas de marmelada e púcaros de água fria, com uns debruns da vista da senhora sua irmã. Que ainda que esta mercadoria seja defessa, pelo senhor da fortaleza, nestas viagens da China, mais se ganha no furtado que no ordenado.

 

Vosso comborço Denis Boto foi espancado nesse ressio uma boca da noite, e não se sabe donde veio este desastre, mais que quanto os homens alcançam por sua lança, mas não é pera espantar se isto de longe se guarda, por quem por amores de Lia dá isto e mais se há de passar. E por que este senhor não cuidasse que era solus peregrinus in Jerusalem, lhe fez companhia daí a uns dias Gaspar Borges Corte-Real, à porta de Pêro Vaz. Dizem que com uns paus o sacudiram como oliveira. Cuidou ele que as pedras não falavam, e disse que dera de comer a seus companheiros com as orelhas que tirara, mas São Lucas afirma que só São Pedro tirou uma a Malco na prisão de Cristo.

 

É certo que cuidastes que esta cantiga que era a duo, pois desenganai-vos, que um mouro da estrebaria do Carneiro lhe levou as contrabaixas, outra noite, mas cuido que não levou mais que duas ou três cargas, porque as outras eram já gastadas, com as figuras acima escritas.

 

Parece-me que já gora querereis que troque as bolas, tocando outras histórias. Tratando algumas cousas das Ninfas da água doce, sou contente, porque sei que há pedaço que me aí aguardais.

 

Dizem que Francisca Gomes, que [já] não amassa no forno aonde soia, por que veio outro mercadante, competidor, e fez a cama fora do leito chorando. Gabai-me esta estratagema, que é de ambas as bandas como tafecira.

 

A senhora Isabel Barbosa, com a outra senhora, deixou a casa para Isabel Nunes, crendo que faria a sua vinda mais cedo, mas já não virá até que paira, salvo se vier também o amante cantante, que por nome não perca.

 

Bajana fez grande festa aos soldados de cima, caindo da sela como Lúcifer da cadeira, e despois da caída, foi salteado pelos franceses, aonde por partido lhe deixaram as armas, mas a verdade é que ele se remeteu a certas cantigas de volta, das que tinha feito, mas não lhe valeu, que aquele privilégio tinha quebrado já em Orfeu, que se escreve que foi moído com as feridas.

 

Parece-me que já terei merecido os mil bens, e porém, não quero que me digais que vos não meço sobre o funil; tomai mais esta minha Algozaria: a terceira Ninfa, Antónia Brás, foi levada a galera Nueva, aonde foram atados seus cabelos de ouro ao pé do mastro.

 

Aonde com triste som

lhe cantaram a mangana

e com esta dor profana

gritos dava de pasión

aquella Reina troyana.

 

Um talabarte zunia

na dama por que foi peca;

ela com dor dizia:

Atentai mano Fonseca,

la terrible pena mía.

 

Ao outro dia esperámos que a cidade fosse posta em armas, mas estorvou-lhe o rifão que está na regra de viver em paz, que diz, dos arruídos, mas a puta leu outra regra que está mais abaixo, que diz: “Atenta bem o que fazes, não te fies de rapazes”, e dês que caiu no entendimento dela, disse, ao seu homem: “Não me sirvais, cavalheiro, i-vos con Dios, que eu mudarei o vinte a parte onde não digam os de Alfama que não tenho guardador, de modo que já hão deixado os três Cupidos do Rompeu.

 

E se vos enfadardes de ler tanto, não acordeis o cão que dorme, mas sofrei mais estas duas regras, nas quais vos darei conta de mi, Já que ma vos não dais:

 

Dizem que é passado nesta terra um mandado para prenderem a uns dezoito de nós, e porque nestas pressas grandes sem vós não somos nada, sabei que deste rol vós sois o primeiro, como sempre fostes em tudo. A razão dizem que é por um homem fidalgo, que dizem que foi espancado uma noite de São João pelo senhor João de Melo, e ele saberá se é assim.

 

O senhor António de Resende beija as mãos a vossa mercê, o mesmo faz Pero Ribeiro Serpe.

 

Depois de ter escrito, soube que não foi Afonso de Bajana o que deixara a espada, senão que fugira, e a espada foi de Simão Ribeiro, tanto monta.

 

Trazei de lá estudado um conluio que faça a Brás Antónia porque, pedindo lhe sobre aposta seu corpo, me fez perder, cousa de que ando muito magoado, e desejoso de vos ver nesta terra. – Vale.

 

 

 

Fonte:

1.     [...]

2.     Carta IV, in Autos e cartas / Luís de Camões. – Vol. III das Obras Completas, com pref. e notas do Prof. Hernâni Cidade. 4.ª ed., Lisboa: Livraria Sá da Costa, 1985. [1.ª ed., 1946], p. 259-264.